07 janvier 2007

DECEPÇÕES PÚBLICAS, ALEGRIAS PRIVADAS*, Viver o Festival de Avignon para viver esta forma particular de amor que é o amor pelo teatro

"Outrora, a certeza de obter em cada instante da minha vida uma revelação que não se renovaria mais, era o mais claro dos meus prazeres secretos: agora, morro envergonhado como um privilegiado que teria assistido a uma festa sublime que só se daria uma vez. Caros objectos, já só têm por testemunha um cego que morre...." (Marguerite Yourcenar)

Quando, há alguns anos, o elegante autor-encenador-actor-desenhador-realizador, Olivier Py começava a ser ouvido nos médias, ele reiterava, sempre que a ocasião era propícia ao que parecia quase uma confidência feita ao ouvido: a sua vida era "habitada" por três amores – Deus, os homens e o teatro. Três amores sem verdadeira contrapartida representacional. Nenhuma imagem concreta no final para materializar as entidades que são "Deus", "os" homens, "o" teatro. Apenas condutas socialmente alimentadas por crenças mais ou menos intensas, de onde se induz o sentimento ideal que chamamos "o amor a Deus", "o amor pelos homens" ou "o amor pelo teatro". Naturalmente, não são idênticas as crenças que sustêm estes três amores. Aliás, também não são os mesmos os registos sociais de acção e de expressão a que recorremos para viver o nosso amor a Deus, o nosso amor pelos homens ou o nosso amor pelo teatro: rezamos a Deus, seduzimos os homens, criticamos o teatro.
Neste sentido, "rezar", "seduzir" ou "criticar" descrevem, com maior rigor, diferenças aptas a qualificar a nossa relação de amor com cada uma das três entidades que são Deus, os homens e o teatro; e permitem, sobretudo, não subsumir sob o único termo "amar" maneiras de estar no mundo relativamente distintas. Acontece o mesmo para as emoções fortes, que parecem acompanhar de maneira similar a nossa relação com Deus, o teatro e os homens: aparentam ser por vezes as mesmas, quando se trata de rir, de sorrir, de chorar, etc… Mas, aqui também, esses actos sémicos pelos quais se exprime o nosso estado de espírito de um momento devem ser analisados em si na singularidade da prática que os faz surgir. E, mesmo quando já não se trata de comparar Deus, os homens e o teatro, mas antes uma prática cultural com uma outra prática cultural, somos, de novo, capazes de inventariar diferenças: se o cinema consegue muitas vezes fazer-nos chorar, deixando-nos envergonhados no final de uma sessão, quando a luz nos arranca colectivamente do genérico final, o teatro, ele, raramente nos arrasta para estes registos do íntimo e menos controlados, favorecendo expressões mais codificadas pelo próprio facto de ser público em público e de se ser constantemente chamado a uma ordem pública específica da prática teatral . Aliás, esta última observação aparece sempre como uma precaução metodológica, indispensável para todos aqueles que desejem analisar "no terreno onde ela se desenvolve" a recepção dos objectos culturais.
A recepção cultural assenta, com efeito, sobre um princípio de singularidade, em que uma prática cultural – estar no teatro, ir ao cinema, contemplar uma pintura, etc. – reenvia para um regime semiótico específico – do teatral, do cinematográfico, do pictórico, etc. – que faz com que as obras com que nós nos confrontamos existam e sejam interpretáveis e interpretadas em função desse regime específico. Este quadro de interpretação é construído à medida da nossa prática do teatro, do cinema, da ópera ou da exposição, e a nossa relação com os objectos das nossas práticas é, ela própria, alimentada pelas nossas expectativas – expectativas essas que se transformam com o tempo e em função da intensidade das nossas práticas.
Contudo, que dissemos nós realmente quando enunciámos que o amor pelo teatro se vive em função de um quadro – chamemos-lhe, para simplificar, "teatralidade" – que estrutura especificamente os nossos actos sémicos de expressão e de emoções quando, espectadores, nos encontramos perante uma obra para a qual as nossas expectativas pessoais mais ou menos nos prepararam? Na realidade, dizemos muito pouca coisa, ou não dizemos nada, sobre o que são essas "expectativas pessoais" que parecem conter sozinhas o sésamo do nosso amor pelo teatro. É por isso que vamos tentar, nas linhas que se seguem, esboçar algumas balizas sociológicas para compreender a natureza dessas "expectativas pessoais", as quais são geralmente desenvolvidas no cruzamento de um horizonte individual, privado, e de um horizonte social, público. Veremos então a importância de apreender o momento da recepção para compreender onde se situa a génese da fruição teatral. Num segundo tempo, observaremos como a procura desse prazer pode transformar-se numa busca frenética, que explica, em parte, o que iremos procurar, fora dos teatros, na oferta abundante e concentrada do Festival de Avignon. Finalmente, tratar-se-á de compreender a necessidade, que têm certos espectadores, de tomarem a palavra no Festival, afim de exprimirem publicamente a sua vontade de continuar a viver aí a sua carreira de espectador.

O momento da recepção teatral:
na encruzilhada das nossas expectativas pessoais

"Um preconceito faz-nos acreditar que a causa de uma obra de arte era o que essa obra tinha para dizer", escreve o historiador Robert Klein. Isto explica, em parte, o sucesso dos estudos literários ou teatrais, em que se tenta indefinidamente descodificar as significações das obras, na esperança de revelar o conjunto dos estratos susceptíveis de conterem todas as modalidades do "prazer" no teatro. Contudo, no teatro, mais do que noutra área, o prazer raramente está contido a priori na própria obra, mas antes no momento da sua representação – donde a importância de nos interrogarmos mais aquém, sobre o momento da recepção teatral.
Para nos convencermos deste facto, basta instalarmo-nos à saída de uma representação e escutar as conversas mais imediatas que têm lugar entre os espectadores. Vemos sempre uma grande satisfação em relatar o que se viu sob a forma de um testemunho que releva quanto o actor que interpretava tal papel era bom, quanto a encenação era moderna, quanto o público envelheceu, etc… Os comentários intervêm aqui como reificações públicas dessas pequenas alegrias privadas que nos permitiram pessoalmente "entrar" no espectáculo e apropriarmo-nos dele. Há como que uma necessidade, uma urgência, em lembrarmos uns aos outros imediatamente "como era", importando e até impondo neste "como era" uma parte de nós próprios. É essencial constatar, aliás, que o que será objecto de discussões e de controvérsias, quando existem, é precisamente essa parte de nós próprios relacionada com o que acabámos de ver. Compreender o momento da recepção teatral torna-se então a tentativa de ter em conta o benefício produzido por essa actividade de pôr em palavras, tão singular quando considerada em si mesma. Apenas nesta perspectiva estaremos em condições de perceber o mosaico tão colorido das démarches sociais, que uma inclinação mais "natural" conduz para a valorização do que temos tendência a sentir como belo.
O que podemos designar como um pragmatismo da experiência estética, encontramo-lo explicitamente já na obra Art as Experience de John Dewey . Para este autor, a actividade artística corresponde sempre ao produto de uma primeira dimensão, a da tensão, da reacção corporal, de uma antecipação; e de uma segunda dimensão, intelectual, reconciliatória: "Para dar uma ideia do que é ter uma experiência – escreve Dewey – imaginemos uma pedra que resvala uma colina. [...] A pedra solta-se de um sítio qualquer e move-se, de uma maneira tão regular quanto o permitam as condições, para um lugar e um estado onde ela estará em repouso, para um fim. Imaginemos, ainda, que essa pedra deseja o resultado final; que ela se interessa pelas coisas que encontra pelo caminho, pelas condições que aceleram e retardam o seu movimento na medida em que afectam o fim visado; que ela age e reage em relação a elas consoante lhes atribua a função de obstáculo ou de ajuda; e que ela estabelece uma relação entre tudo o que aconteceu antes e o repouso final, o qual surge, então, como o ponto culminante de um movimento contínuo. A pedra teria, nesse caso, uma experiência e essa experiência teria uma qualidade estética. […] Os "inimigos da estética" – acrescenta Dewey – posicionam-se contra a trajectória e esquartejam a unidade de uma experiência em direcções opostas. [Neste sentido], luta e conflito podem procurar um prazer, mesmo sendo dolorosos: é que eles fazem parte da experiência, na medida em que a fazem progredir. [Em última análise, qualquer experiência fruitiva pode ser assimilada a uma dor]. Doutra forma, não poderíamos fazer entrar na experiência aquilo que a precedeu. É que "fazer entrar", numa experiência vital, é mais do que colocar qualquer coisa à superfície da consciência, por cima do que era anteriormente conhecido. Isso implica uma reconstrução que pode ser dolorosa."
O que Dewey descreve convida-nos, naturalmente, a repensar o momento da recepção teatral em que se dá a ligação entre representação e público, sem que seja absolutamente necessária a concordância entre um e outro: sendo possíveis os insucessos ao nível da intenção, da recepção, ou da sua combinação. O prazer, quando nasce desse momento, resulta sempre de uma coincidência particular e rara entre si e os outros. Esse momento preciso em que se vive "si próprio como um outro" diria Ricœur, um momento próprio de todas as experiências culturais marcantes da nossa vida, que dá um sentido a esta última e nos leva a "entrar em carreira de espectador" para tentar reviver com a mesma intensidade as emoções ligadas a esse(s) momento(s) marcante(s). É importante sublinhar que esses momentos são raros – em geral, um espectador que foi ao teatro toda a sua vida recorda-se de dois ou três grandes momentos, a partir dos quais ligará o conjunto das suas outras experiências teatrais. É necessário precisar, para ser justo, que o primeiro momento em que se sente prazer no teatro só muito excepcionalmente coincide com a primeira vez que se vai ao teatro. Esses momentos podem igualmente nunca acontecer e as expectativas pessoais em relação à coisa teatral não assumem então nenhuma forma particular . Tem-se, então, para com o teatro, um mero interesse distante, ou uma certa indiferença. Ao invés, certos públicos picam-sei – como eles próprios dizem: de teatro – e vão pôr-se freneticamente em busca desses momentos de prazer teatral que vão dar um sentido particular às suas carreiras de espectadores.


O Festival de Avignon segundo a lei dos rendimentos decrescentes

No belo livro intitulado Essais d'ethnopsychiatrie générale , o etnólogo George Devereux desenvolve sob um ângulo singular a psicopatologia do comportamento criminoso como fundadora de um certo negativismo social. Metodologicamente, os resultados esperados da análise que ele intenta realizar poderão inspirar fortemente as abordagens em sociologia da cultura, quando se trate de compreender certas atitudes espectatoriais e, nomeadamente, o frenesim de consumo cultural. Em poucas palavras, a ideia que permite a Devereux ligar negativismo social e psicopatologia criminal assenta em dois postulados:

• Existe uma relação funcional entre o tipo de crime cometido e a natureza do conflito. Em muitos casos, a angústia, engendrada por um determinado conflito, só pode ser apaziguada pela concretização de um acto criminoso particular. O comportamento-tipo de um determinado criminoso constitui, de alguma forma, a sua assinatura ou a sua marca registada; ele veicula a impressão da sua personalidade, tal como o faria um poema escrito por ele. Esta analogia está longe de ser superficial. As condições extremas do trabalho criminoso são, com efeito, para o artista, apenas mais limitativas do que a natureza dos seus materiais.
• O comportamento criminoso, sendo sintomático de um conflito, comporta na sua resolução um "benefício nevrótico", na medida em que ele apazigua a angústia que suscita esse conflito. Do ponto de vista pragmático e social, esses benefícios nevróticos estão submetidos à lei do rendimento decrescente. Esta lei pode ser assim enunciada: o primeiro crime é geralmente aquele que traz o mais intenso dos benefícios nevróticos. Cada vez que o criminoso comete um novo crime, esse benefício perde regularmente em intensidade, o que conduz muitas vezes o criminoso a multiplicar em número os seus actos, afim de compensar a intensidade decrescente com a qual vive cada novo crime.

O leitor perdoar-me-á, espero, ter transposto de forma um pouco brutal a abordagem que Devereux opera para explicar o comportamento criminoso para as esferas do teatro e do comportamento espectatorial. Deve-se encará-la apenas como fricção teórica, com vista a formular algumas hipóteses para elucidar e fazer trabalhar certas observações de terreno. Tentemos, então, a transposição alterando algumas palavras afim de substituir "comportamento criminoso" por "comportamento cultural" e vejamos o que acontece aos nossos dois postulados teóricos:

• Existe uma relação funcional entre o tipo de prática cultural e a natureza das expectativas espectatoriais. Em muitos casos, a angústia, engendrada por determinadas expectativas, só pode ser apaziguada pela concretização de um acto cultural particular. O comportamento-tipo de um determinado espectador constitui, de alguma forma, a sua assinatura ou a sua marca registada; ele veicula a impressão da sua personalidade, tal como o faria um poema escrito por ele. Esta analogia está longe de ser superficial. As condições extremas do trabalho espectatorial são, com efeito, para o artista, apenas mais limitativas do que a natureza dos seus materiais.

• O comportamento cultural, sendo sintomático de certas expectativas, comporta na sua resolução um "benefício nevrótico" na medida em que ele apazigua a angústia que suscitam essas expectativas. Do ponto de vista pragmático e social, esses benefícios nevróticos estão submetidos à lei do rendimento decrescente. Esta lei pode ser assim enunciada: o primeiro momento de prazer no teatro é geralmente aquele que traz o mais intenso dos benefícios nevróticos. Cada vez que o espectador volta ao teatro, esse benefício perde regularmente em intensidade, o que conduz muitas vezes o espectador a multiplicar em número as suas idas ao teatro, afim de compensar a intensidade decrescente vivida em cada um dos seus actos.

A partir daqui, tal como a prática criminóloga pode ser compreendida graças às regularidades características de comportamentos criminosos confirmados, a prática do teatro poderá, ela também, ser entendida graças às regularidades sociais motivadas pelas expectativas culturais alimentadas em cada ida ao teatro. Neste sentido, poderíamos conceber que as propostas culturais desenvolvidas pelos grandes festivais, tais como o Festival de Avignon, permitem satisfazer os nossos desejos de teatro no que eles podem por vezes ter de frenético. A profusão da oferta de espectáculos do In e do Off em Avignon seria então apenas o signo desta tragédia moderna da cultura. Estamos próximos do que o sociólogo Georg Simmel avança quando defende que as nossas práticas culturais correspondem, antes de mais, a um desenvolvimento e a uma realização de si por assimilação dos conteúdos culturais que se nos oferecem, e que seremos susceptíveis de reivindicar ; o nosso maior problema é que a oferta de conteúdos excede em muito o que nós somos capazes de assimilar. Concebemo-lo facilmente em Avignon, onde não pode existir um único espectador que possa pretender ter visto tudo, In e Off confundidos, e isso, mesmo se ele consagrar todo o seu tempo e todo o seu dinheiro ao Festival. E segundo Simmel, se o significado que qualquer indivíduo deposita numa prática cultural visa enriquecê-lo, a hipertrofia da oferta de conteúdos pode potencialmente até abatê-lo, donde uma situação paradoxal, e mesmo trágica. A partir daí, o único refúgio moral é o da renúncia material a esta totalidade intangível da cultura, e isto, em benefício de escolhas restritas, que se apresentam em geral como perfeitamente assumidas. De facto, o programa de qualquer espectador de Avignon é feito a partir de uma série de critérios que ele procura tornar objectivos sobre a base de um reconhecimento directo ou indirecto que ele possui a priori – encenadores, texto, actores, lugares, críticas, etc. -, e não sobre uma selecção que ele faria em total presciência do que reveste cada uma das propostas do Festival. É assim que se activa, cada vez que fazemos uma escolha para uma peça, não uma curiosidade simples, mas toda uma rede de referências fabricada pela nossa experiência, a nossa carreira de espectador. E, mesmo quando se justifica esta escolha como sendo "totalmente pessoal", compreendemos sem dificuldade que se trata, na realidade, do produto de um grande número de condicionantes sociais e culturais. Fingimos, felizmente, e muitas vezes utilmente, ignorá-lo.
Sigamos ainda mais longe o pessimismo de Simmel. Como percebemos, o trágico está inscrito na cultura por via da consciência que temos de não a possuirmos na totalidade. Mas não é tudo; para Simmel, o trágico está igualmente inscrito nas próprias condições do que é apropriado. Com efeito, quando se decide apropriar-se um objecto cultural, assistir a uma peça de teatro, tenta-se acrescentar uma peça a esta carreira de espectador que define a nossa personalidade. É este perfil cultural que nos permite, para nós próprios e aos olhos dos outros, "dizer" uma parte, muitas vezes profunda e íntima, daquilo que nós somos. E, no entanto, este é o paradoxo trágico: este si íntimo construiu-se, vemo-lo bem no teatro, com o conjunto do público. Então, o que significa afirmar, graças aos nossos gostos em matéria de cultura, o que somos singularmente, quando tantos outros se nos assemelham nas suas experiências? Como distinguirmo-nos de outrem, recorrendo a práticas cuja banalidade pode rapidamente tornar-se evidente? Como, entretanto, ser reconhecido pelo que somos, por um outro que não tem o mesmo quadro de referência que nós? Tantas questões sem respostas concretas, que conformam a face trágica e paradoxal do nosso devir em actos. Tantas questões que explicam, no entanto, o sentido e o valor que acordamos à busca de nós próprios. Tantas questões que consolidam a dimensão afectiva que investimos nas nossas démarches culturais que, relacionadas com essa famosa lei dos rendimentos decrescentes exposta anteriormente, assumem um significado particular em Avignon.


Avignon 2005: decepção pública ou decepção do público?

Em Avignon, como já percebemos, não lidamos com espectadores de teatro como os outros. Avignon, aliás, não é como um teatro grande. Tornou-se uma cidade-Festival, ou seja uma cidade reconfigurada, transfigurada pela prática do teatro e subitamente habitada por espectadores que fazem desse vasto espaço público um espaço à dimensão das suas expectativas pessoais. Já não é com o espaço público da cidade que nos confrontamos em tempo de Festival, mas com uma espacialização pública de uma pseudo-resposta a uma procura frenética de teatro, ou, pelo menos, que nos representamos como frenética. Cada um espera encontrar aí teatro a seu gosto, ou, pelo menos, encontrar a intensidade, a emoção original de um primeiro grande momento de teatro. É, sem dúvida, a primeira razão pela qual o Festival de Avignon é tão veiculador de grandes aspirações, como o é de grandes decepções.
A memória colectiva permanece habitada pela nostalgia do teatro popular mitológico, que nunca existiu verdadeiramente em Avignon, e pelas experiências espectatoriais recentes mais marcantes. Le Soulier de Satin de Antoine Vitez (1987), Le Mahabharata de Peter Brook (1985) e La Servante de Olivier Py (1995) são as últimas grandes epopeias a que fazemos hoje referência para ler e exprimir o que vivemos ao sair de cada novo Festival. Três epopeias que assinalam a mais-valia de sentido que cada um espera encontrar em Avignon. Uma mais-valia de sentido que, aqui, permite sobretudo fazer concordar uma busca de alegrias privadas com uma emoção pública. Pontos de referencial, pontos de memória, essas "grandes" peças tornam-se também referência como ponto de transmissão. Ao mesmo tempo, elas interrogam o Festival enquanto campo de experimentação dos possíveis cénicos.
O economista Albert O. Hirschman explica, no seu livro Exit, Voice and Loyalty , como reagimos quando um bem ou um serviço já não correspondem totalmente às nossas expectativas: a maioria das vezes – diz ele – fazemos eliminação. Fazer eliminação (exit/saída), é abandonar esse bem ou esse serviço. Se é simples fazer eliminação quando lidamos com uma marca de sopa – escolhemos outra marca –, isso torna-se extremamente complicado quando o bem ou o serviço que procuramos ocupa uma situação de monopólio e não existe nenhum bem ou nenhum verdadeiro serviço de substituição. Todavia, uma saída é ainda possível, graças à possibilidade que temos de fazer saber o nosso desacordo, tomando a palavra (voice/voz) para exprimir o nosso ressentimento. E se esta tomada de palavra é possível – acrescenta Hirschman – é porque, antes de mais, os indivíduos, os participantes, os praticantes são leais (loyalty/lealdade): eles preferem dizer o que sentem em vez de saírem porta fora. Aqui também, manifesta-se, por necessidade, uma expressão privada num quadro público. A analogia com o Festival de Avignon vislumbra-se aqui. O Festival aparece, hoje, como um lugar único, e, quando parece distanciar-se do que esperamos dele, duas alternativas são possíveis. Ou o abandonamos sem encontrar em nenhum outro lugar em França "outro Avignon". Ou o criticamos, indo até ao ameaçar de um fim próximo, que seria o resultado da possível eliminação da totalidade dos seus participantes.
É muito importante ter em conta esta ideia forte de lealdade na prática, avançada por Hirschman, para compreender as tomadas de palavra e o sentido que elas assumem. Todas essas tomadas de palavra públicas funcionam como chamadas a uma ordem que releva de expectativas pessoais em relação ao que nos representamos como devendo ser "o" Festival de Avignon. Essas representações – asseguremo-lo – não são nem estáticas, nem rígidas, mas impõem em cada temporada avinhonense um quadro maleável, susceptível de acolher as aspirações espectatoriais de cada um. É necessário ter vivido com o Festival para compreender isto, dirão os mais fieis e os mais assíduos dos festivalenses. De resto, não ter vivido o Festival na duração, ou ter vivido apenas uma ou duas edições anteriores, precipitam muitas vezes as representações que podemos ter do Festival. É o que ilustra brilhantemente o pequeno panfleto de Régis Debray, Sur le pont d’Avignon , ou, pelo menos, aquilo que ele imagina ser um panfleto: nada mais que uma redescoberta do Festival, falsamente cândida mas dogmaticamente reaccionária, por um retórico habituado a surfar "subtilmente" na onda da demagogia anti-intelectual chique ; nada mais do que uma redescoberta do Festival por um retórico que não frequentava desde 1956. O choque era inevitável: "Em 1956, havia «simbólico» – escreve ele –, porque existia um fundo comum de saberes e de mitos […]. Em 2005, três quartos do repertório moderno «consensual e federador» desfiam aos nossos ouvidos nomes de usbequistaneses, contam histórias de madalenense médio". Pobre Régis, pomo-nos a imaginar, na mesma linha, o choque que representaria para ele o facto de ligar hoje a televisão se não a tivesse visto desde os anos sessenta. Como encararia ele as centenas de canais de televisão disponíveis por cabo ou por satélite? Qual seria a sua emoção ao constatar que já não existe um único grande canal "federador", a preto e branco, mas dezenas de canais temáticos consagrados ao património cinematográfico, à difusão do teatro, canais "religiosos" especializados – KTO, TFJ, etc. –, um canal gay – Pink TV -, etc… Ele apressar-se-ia, certamente, a fazer rapidamente um novo livro acerca da nossa perda de referências, a desfiar uma nova lamentação em nome dessa famosa litania do "antes era melhor", para finalmente negar a compreensão do que é em benefício do que ele queria que fosse. Neste sentido, o pequeno panfleto de Debray sobre Avignon não deverá legitimamente, em caso algum, ser entendido como um testemunho suplementar, a juntar às polémicas do Verão de 2005, que abalaram – dizem – o Festival. Os primeiros protagonistas da dita polémica conhecem bastante bem a manifestação e não são animados pelo sentimentalismo afectado de uma Ponte de Avignon "debrayada"*. Não, as suas tomadas de palavra são bem as de espectadores leais, que se transformaram, com o tempo, em "participantes" segundo a feliz injunção de Vilar.
A 17 de Outubro de 2005, os directores do Festival – "Hortense e Vincent" - organizavam na Capela dos Penitentes Brancos um encontro aberto com os espectadores avinhonenses, afim de ser feito um último balanço sobre o Verão agitado. Uma espectadora de cerca de sessenta anos, amiga do Festival, toma a palavra: "Sim, nós lemos os jornalistas que na maioria conhecem bem o Festival e respeitamos o seu trabalho quando é aceitável aos nossos olhos, ou seja quando é objectivo, mas nós, espectadores, temos a nossa própria opinião… Não precisamos deles para isso… Sim, vocês deram-nos Py, Sivadier e Warlikowski… Têm razão em lembrar-nos que o Festival também é um lugar de lançamento de novas estéticas, às quais não somos obrigados a aderir… Isso interessa-nos… Mas, com franqueza, «La Cour!»… Preservem a «Cour» e podem fazer passar o que quiserem ao lado… Há trinta e cinco anos que venho ao Festival, que vou ver tudo, mas, sobretudo, que faço vir amigos para lhes mostrar o que é «Avignon», e portanto obviamente, espero poder levá-los à «Cour», e desta vez, não pude, realmente não pude… Eu vi o espectáculo das lágrimas… Mas daí a levar os meus amigos… Para mim, esta «Cour» é sagrada… Por isso, por favor, sejam os guardiães da «nossa Cour», para que possamos viver plenamente o nosso Festival…". Como diz Jean-Louis Fabiani: "estávamos aqui no centro da exigência originária do Festival, que é também a sua última justificação". Uma vez mais, Avignon-Verão de 2005 testemunha o papel que reivindica o espectador de teatro no dispositivo festivalício, um lugar onde as suas decepções públicas são, antes de mais, o sinal expressivo da sua vontade de continuar a poder falar aqui, na antiga cidade dos Papas, das suas alegrias privadas. Uma outra maneira de declarar o seu amor apaixonado do teatro. Entretanto, na rue de la République, no mais antigo cinema de Avignon, o Pathé-Palace, podíamos observar outros públicos apressarem-se para irem ver um remake dos anos 50 – verdadeiro remake esse - assinado por Spielberg, inspirado em H.G. Wells, La Guerre des Mondes, alegadamente um filme de ficção-científica.

Emmanuel Ethis
Centre Norbert Elias, Université d’Avignon
Les Angles, 21 décembre 2007